Fonte: Correio Braziliense | Seção: Notícias | Imagem: Reprodução Internet | Data: 09/08/2025
Pesquisas revelam que as falhas de memória quando entramos em um novo ambiente não se devem à distância, nem ao tempo decorrido, mas ao simples fato de mudarmos de “cena”.
Você chega à cozinha com uma ideia clara na cabeça. Mas, ao cruzar a porta, algo se dilui e você não lembra o que veio fazer.
Você fica, então, alguns segundos em frente à geladeira, como se o frio pudesse refrescar a intenção que se perdeu com a mudança de ambiente.
A psicologia cognitiva estudou este fenômeno e ele é conhecido como “efeito porta” (doorway effect ou location updating effect, em inglês). Basta atravessar uma porta para que o cérebro interprete que uma função terminou e outra começou.
Isso ocorre porque nossa memória semântica (que usamos para recordar conceitos) funciona melhor quando está associada à memória episódica (que empregamos para recordar lugares). E esta última está vinculada a chaves contextuais.
Por isso, quando voltamos ao contexto original (sempre dissimulando um pouco, se houver alguém presente), costumamos recuperar as informações perdidas.
Essa farsa efêmera bem que poderia ser representada em um teatro, como o simbólico e carnavalesco Grande Teatro Falla de Cádiz, na Espanha, em frente ao qual escrevo estas palavras.
Abrem-se as cortinas e surgem pessoas em trajes de mergulho
No final da década de 1970, o psicólogo britânico Alan Baddeley, mundialmente conhecido pelos seus estudos da memória, realizou com seus colegas diversos estudos com um elenco curioso.
No seu experimento mais conhecido, ele pediu a uma equipe universitária de mergulho que memorizasse listas de palavras em dois ambientes distintos: embaixo d’água e em terra firme. Depois, ele avaliou a capacidade dos participantes de recordar aquelas palavras, tanto no mesmo ambiente de aprendizado quanto no outro.
O resultado foi claro. Os que aprenderam e recordaram no mesmo lugar (água-água ou terra-terra) atingiram melhores resultados.
E, com o passar do tempo, diversos outros estudos confirmaram que o contexto e o próprio estado de espírito desempenham papel fundamental nas funções da memória.
Mudança de cena: surge o esquecimento
Em outras palavras, a memória é como uma atriz de teatro, que interpreta especialmente bem seu papel se a decoração, o vestuário e a própria iluminação forem os mesmos dos ensaios.
Mas, se ela não tiver estudado bem o roteiro, irá sucumbir a uma mudança de cena que inclua atravessar uma porta.
A denominação “efeito porta” foi empregada pela primeira vez em 2011, mas o fenômeno começou a ser estudado em 2006.
Nesse primeiro estudo, a equipe de pesquisa solicitou aos participantes que memorizassem objetos presentes em um espaço virtual e se movimentassem em seguida (virtualmente) para outra sala.
Eles descobriram que, no exato momento de atravessar a porta, a capacidade de recordar aqueles objetos diminuía significativamente.
Diversas pesquisas posteriores reforçaram que se trata de um princípio geral de atualização da memória. Além disso, ficou demonstrado que a queda de rendimento não se devia à distância percorrida, nem à passagem do tempo, mas ao simples fato de mudar de “cena”.
Estes resultados sustentam a ideia do “modelo de horizonte de eventos”. Modificando-se o contexto, as informações associadas são segmentadas e se tornam menos acessíveis.
E o esquecimento ocorre até mesmo quando simplesmente imaginamos que estamos cruzando uma porta.
O ato final que revela a trama
Como demonstramos ao longo deste artigo, não é a porta em si que apaga nossa memória, mas a mudança de cenário. O cérebro interpreta que um novo ato está começando e desvincula parcialmente as informações do ato anterior.
Nesta linha de pensamento, diversos estudos recentes, utilizando realidade virtual, também confirmaram que o importante é a transição entre os ambientes, não o fato de atravessar a porta.
Uma das principais razões desses lapsos parece ser a atividade multitarefa. Quando realizamos várias ações de uma vez, o cérebro divide sua atenção como pode e alguma informação fica nos “camarins”.
Nossa capacidade cognitiva é limitada e, quando o contexto se altera, as tarefas que não têm prioridade podem se desvanecer.