O cérebro preserva um complexo e seletivo sistema de memórias e emoções

Fonte: Correio Braziliense | Seção: Notícias | Imagem: Reprodução Interne| Data: 19/02/2025

Cientistas descobrem que há uma área específica que conecta o córtex entorrinal (CE) ao hipocampo (HC), numa rota de comunicação que classifica os estímulos, com um fluxo mais rápido, e estabelece o que deve ser lembrado

Um novo circuito cerebral que mistura informações sensoriais, memórias e emoções para distinguir o que é importante foi descoberto por cientistas da Universidade de Nova York (NYU), nos Estados Unidos. O estudo, publicado ontem na revista Nature Neuroscience, mostra que há uma área cerebral, que conecta o córtex entorrinal (CE) ao hipocampo (HC), que tem uma rota de comunicação que, até então, não havia sido reconhecida. Essa nova via é crucial na classificação de estímulos e determina o que é relevante para ser lembrado.

O circuito estudado pelos pesquisadores conecta diretamente o CE, uma região do cérebro responsável pelo processamento sensorial, ao hipocampo, centro de armazenamento de memória. Antes, acreditava-se que as mensagens fluíam por um caminho indireto, o que causava pequenos atrasos na comunicação. A descoberta, no entanto, revela uma via direta entre essas áreas, o que permite um fluxo mais rápido de informações, facilitando a incorporação imediata de experiências sensoriais, como imagens e sons, com memórias e emoções associadas.

Nova compreensão

Segundo Jayeeta Basu, professora assistente NYU Grossman School of Medicine e autora principal do estudo, a análise anatômica e funcional dos circuitos cerebrais revela uma perspectiva inovadora sobre como o cérebro processa e organiza informações complexas. Basu detalhou que as diferenças observadas entre os circuitos de resposta direto e indireto sugerem que essas vias têm funções distintas, mas complementares, na codificação de informações e na formação de memórias. Para ela, a combinação dos dois permite o processamento de estímulos sensoriais de maneira mais eficiente.

A equipe de pesquisa sugere que compreender melhor a interação entre o hipocampo e o córtex entorrinal pode abrir portas para tratamentos mais eficazes para condições clínicas que envolvem disfunções desses circuitos, como pessoas com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Segundo a publicação, muitas vezes pacientes com TEPT não conseguem distinguir entre memórias de traumas passados e estímulos sensoriais do presente, o que pode provocar respostas emocionais excessivas a ruídos ou situações cotidianas.

Tradicionalmente, o modelo de comunicação entre o hipocampo e o córtex entorrinal indica que o hipocampo recebe informações do mundo externo por meio das camadas superficiais numeradas 2 e 3 do córtex entorrinal. No entanto, essas informações eram enviadas de volta ao córtex por meio de um circuito indireto que envolvia a camada 5 do córtex, mais profunda, provocando um atraso nos sinais de retorno. Essa demora pode modificar a forma como as informações são processadas e afetar a precisão das memórias.

Usando técnicas de mapeamento neuronal, descobriu o caminho de feedback direto que conecta diretamente o hipocampo às camadas 2 e 3 do córtex entorrinal, sem a necessidade de passar por camadas intermediárias. Isso significa que, quando o hipocampo “acessa” uma memória ou uma emoção armazenada, ele pode enviar rapidamente sinais para as camadas do córtex entorrinal.

Marta Rodrigues de Carvalho, neurologista do Hospital Anchieta, detalhou que o hipocampo, crucial para a memória, recebe diversas entradas do córtex por meio do córtex entorrinal. “Esse circuito está ligado ao reconhecimento de objetos e ao aprendizado espacial, coordena projeções e sincroniza oscilações neurais entre regiões cerebrais. As principais características neuroquímicas do transtorno do estresse pós-traumático incluem a regulação anormal de neurotransmissores em circuitos cerebrais que regulam/integram o estresse e as respostas de medo.”

“Logo, a descoberta de uma via que pode influenciar mais rapidamente a percepção do estímulo pode ajudar os pacientes a filtrar estímulos danosos. Esse mesmo raciocínio pode aplicar-se a doenças degenerativas”, destacou a especialista. Para a equipe, um dos aspectos mais fascinantes da descoberta é a diferença na forma como ambas vias operam. Enquanto o circuito indireto, já conhecido, provoca respostas neurais vigorosas, o direto, ao invés de causar respostas fortes e abruptas, ativa uma forte inibição nas células do córtex entorrinal, enviando sinais mais sutis e delicados modificando rapidamente o processamento de informações sensoriais.

De acordo com Silvio Pessanha Neto, doutor em neurologia e neurociência pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e diretor de medicina do Instituto de Educação Médica (IDOMED). “A prova intuitiva de que tal circuito modulador existe é que cada pessoa reage de maneira diferente aos mesmos estímulos e vivências. Certamente, essa diferença está associada à capacidade de modulação do córtex pré-frontal, ao medo processado na amígdala, entre outros fatores.”

“Essa combinação pode ser essencial para o aprendizado rápido, a tomada de decisões e a plasticidade cerebral, pois permite que o cérebro ajuste dinamicamente a importância das informações sem sobrecarga”, reforçou.

O futuro

Os autores planejam novos ensaios para investigar como o mecanismo influencia a tomada de decisão no córtex pré-frontal e como esses processos podem ser alterados em condições, como o Alzheimer. O próximo trabalho também irá avaliar os efeitos do envelhecimento sobre esses mecanismos.

 Hipótese para o deja vù

“A existência dessas vias alternativas sinaliza que é um sistema com o ajuste muito fino, ajustado conforme as necessidades. Esse novo circuito pode ser mais uma ferramenta que a nossa biologia, o nosso cérebro foi desenvolvendo ao longo do tempo para privilegiar informações associadas ao emocional. Algo que me chamou a atenção sobre o assunto é a existência dessas duas conexões que trabalham em tempos um pouco diferentes, talvez possa levantar alguma hipótese sobre um efeito que é conhecido como déjà vu, a sensação de estar vivenciando novamente uma situação. Isso pode ser um duplo sinal que está chegando em tempos diferentes. Mas é uma hipótese, existem várias outras para explicar esse tipo de fenômeno.”

Genética da linguagem falada

A origem da linguagem falada ainda é incompreendida. Os Neandertais provavelmente tinham características anatômicas na garganta e nos ouvidos que poderiam ter facilitado a produção e a percepção da fala. No entanto, apenas humanos modernos têm as regiões cerebrais expandidas essenciais para a produção e compreensão da linguagem. Recentemente, pesquisadores da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, descobriram uma variante de proteína exclusiva dos humanos que pode ter influenciado o surgimento da comunicação oral elaborada.

Em um estudo publicado na revista Nature Communications, os cientistas identificaram que, ao introduzir a variante humana do NOVA1 — uma proteína fundamental para o desenvolvimento neural— em camundongos, a vocalização dos animais mudou enquanto se comunicavam entre si. O trabalho também confirmou que essa variante não foi encontrada em Neandertais ou Denisovanos, parentes antigos dos seres humanos.

“Esse gene faz parte de uma mudança evolutiva significativa nos primeiros humanos modernos e sugere origens antigas para a linguagem falada. O NOVA1 pode ser um genuíno ‘gene da linguagem’ humano, embora seja somente uma das muitas mudanças genéticas exclusivas dos humanos”, destacou Robert Darnell, chefe do laboratório de neuro-oncologia molecular da Rockfeller.

Um gene frequentemente associado à linguagem é o FOXP2. Pessoas com mutações nele apresentam graves dificuldades de fala. Os seres humanos têm duas substituições de aminoácidos no FOXP2 que não são encontradas em outros primatas e mamíferos, mas os Neandertais também possuíam essas alterações, sugerindo que a variante surgiu em um ancestral comum. No entanto, o papel do FOXP2 no desenvolvimento da linguagem humana ainda é tema de impasses na comunidade científica.

Agora, o NOVA1 surge como candidato promissor. Esse gene gera uma proteína que é crucial no desenvolvimento do cérebro no controle neuromuscular e foi caracterizado por Darnell em 1993. Embora seja encontrada de forma semelhante em diferentes espécies, ela apresenta uma forma única nos humanos

Para o novo estudo, a equipe usou edição genética CRISPR para substituir a versão comum do NOVA1 encontrada em camundongos pela variante humana I197V. Em seguida, mapearam os locais de ligação de RNA do NOVA1 no cérebro dos camundongos. A primeira descoberta importante foi que a variante humana não alterou a ligação de RNA associada ao desenvolvimento neural ou ao controle motor. Ela funcionou exatamente da mesma maneira que a proteína original.

Os cientistas verificaram, então, que os locais de ligação mais afetados pela variante humana estavam em genes relacionados à vocalização. “Além disso, muitos desses genes, que estão envolvidos na vocalização, também eram alvos de ligação do NOVA1, sugerindo ainda mais que o NOVA1 tem um papel importante na vocalização”, destacou Yoko Tajima, primeira autora da pesquisa e estudante de pós-doutorado.

Nos anos seguintes, os pesquisadores investigaram as vocalizações de camundongos.Eles observaram padrões vocais alterados tanto em filhotes de camundongos de ambos os sexos quanto em machos adultos.