Cogumelos alucinógenos no tratamento contra compulsão

Fonte: Correio Braziliense | Seção: Notícias | Imagem: Reprodução Internet | Data: 28/10/2025

Revisão de 13 estudos com humanos e animais, financiada pelo governo australiano, mostra potencial da psilocibina, composto alucinógeno encontrado em alguns fungos, para tratar de forma duradoura transtornos como TOC e dismorfia corporal.

Composto alucinógeno presente em alguns tipos de cogumelos, a psilocibina tem potencial para tratar transtornos obsessivo-compulsivos (TOC) e condições associadas. Uma revisão de 13 estudos clínicos e pré-clínicos, financiada pelo Conselho Nacional de Saúde da Austrália, constatou que doses únicas da substância reduziram de forma rápida e duradoura os sintomas de compulsão, tanto em pacientes humanos quanto em modelos animais geneticamente modificados. A pesquisa foi publicada na revista Psychedelics.

Estima-se que cerca de 3% da população mundial sofra de TOC, e até 40% dos pacientes não respondem adequadamente aos tratamentos atuais — baseados, principalmente, em antidepressivos e terapia cognitivo-comportamental. O transtorno está entre as 10 principais causas de incapacidade psiquiátrica global, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

“Os resultados convergem para um mesmo ponto: a psilocibina exerce efeitos anticompulsivos robustos e sustentados, muitas vezes após uma única administração”, resume o neurocientista James Gattuso, autor principal do estudo e pesquisador do Instituto Florey de Neurociência e Saúde Mental da Universidade de Melbourne. A revisão inclui tanto experimentos clínicos com pacientes diagnosticados com TOC e transtorno dismórfico corporal quanto estudos em camundongos com comportamentos compulsivos validados em laboratório.

Consistência

Entre os quatro ensaios clínicos incluídos na revisão, os resultados foram consistentes: melhora expressiva dos sintomas obsessivo-compulsivos em poucos dias, dizem os autores. O primeiro estudo tem quase duas décadas: conduzido em 2006 por Francisco Moreno, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, aplicou doses orais crescentes de psilocibina em nove pacientes com TOC resistente ao tratamento. As reduções nos escores da Escala Yale-Brown — padrão para medir a gravidade do transtorno — variaram de 23% a 100% nas horas seguintes à administração.

Pesquisas mais recentes reforçam o potencial terapêutico. Em 2024, o psiquiatra Frank Schneier, da Universidade Columbia, também nos Estados Unidos, investigou 12 adultos com transtorno dismórfico corporal, condição do mesmo espectro diagnóstico que o TOC. Pessoas que sofrem do problema têm uma visão distorcida da imagem do próprio corpo. 

Uma dose única de 25mg de psilocibina levou à redução significativa e duradoura dos sintomas por até 12 semanas. Sete dos 12 participantes responderam ao tratamento, e quatro entraram em remissão completa. “O padrão de melhora sugere que o efeito da psilocibina não se restringe a um diagnóstico específico, mas pode beneficiar todo o espectro obsessivo-compulsivo”, comenta Frank Schneier.

Em outro estudo, de base populacional, 135 pessoas diagnosticadas com TOC relataram melhora subjetiva após consumir cogumelos contendo psilocibina. Cerca de 30% afirmaram que os benefícios persistiram por mais de três meses, especialmente entre os que haviam feito uso repetido da substância. Para os autores da revisão, os relatos indicam que esquemas de microdosagem ou doses repetidas merecem mais investigações, pois parecem promissores. 

Mecanismo

Se nos pacientes humanos os resultados já são animadores, nos laboratórios as descobertas são ainda mais intrigantes, disseram os autores. A revisão destaca experimentos com camundongos geneticamente modificados, conhecidos como SAPAP3 knockout, modelo validado para o estudo do TOC. Esses animais exibem comportamentos de autolimpeza excessiva, chegando a causar ferimentos na pele — um paralelo à compulsão em humanos.

Nos experimentos, conduzidos em 2024 por dois grupos independentes, uma dose única de psilocibina reduziu o comportamento compulsivo nos camundongos por até seis semanas. Em alguns casos, o efeito persistiu por mais de 40 dias. “Essa replicação independente em diferentes laboratórios é o que torna os resultados tão convincentes”, explica Thibault Renoir, coautor da revisão e pesquisador do Instituto Florey. “Vemos uma resposta duradoura após apenas uma exposição, o que contrasta com os antidepressivos tradicionais, que precisam de uso diário contínuo.”

O efeito não se limitou à redução de comportamentos compulsivos. Em alguns estudos, observou-se também aumento da densidade de espinhas dendríticas — pequenas projeções neuronais que formam conexões sinápticas — e elevação na expressão de proteínas associadas à neuroplasticidade, sugerindo que a psilocibina pode remodelar circuitos cerebrais anormais ligados ao TOC.

Bloqueio

Embora a psilocibina atue principalmente como agonista do receptor 5-HT2A da serotonina — o mesmo responsável por seus efeitos psicodélicos —, a revisão aponta que os efeitos anticompulsivos podem ocorrer mesmo quando esse receptor é bloqueado. Em modelos animais, o uso de antagonistas seletivos não impediu a melhora comportamental. Isso sugere que a substância pode agir por vias neuroplásticas alternativas, talvez modulando outros receptores de serotonina (como 5-HT2C) ou ativando cascatas moleculares associadas ao fator neurotrófico BDNF.

Essa descoberta abre um campo de pesquisa promissor, diz o líder do estudo, pois análogos não alucinógenos da psilocibina, como a 1-metilpsilocina, reduziram comportamentos repetitivos em roedores sem induzir efeitos psicodélicos. “Se conseguirmos separar a experiência alucinógena do efeito terapêutico, será possível desenvolver medicamentos seguros, eficazes e acessíveis”, afirma Gattuso.

Caminho da substância

A aposta dos pesquisadores é que a psilocibina “destrava” o cérebro rígido do TOC ao induzir uma janela de neuroplasticidade: o circuito que antes estava preso em rituais repetitivos fica temporariamente maleável — e essa flexibilidade pode consolidar um novo padrão comportamental com menos compulsão.

• Do cogumelo ao cérebro

A psilocibina é convertida no organismo na substância psilocina, que se liga a receptores de serotonina no cérebro — especialmente o 5-HT2A, associado a percepção, humor e flexibilidade cognitiva.

• Alívio rápido da compulsão

Em pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e transtorno dismórfico corporal, uma única dose reduziu sintomas obsessivos e comportamentos repetitivos em horas ou dias, com efeitos que em alguns casos duraram até 12 semanas.

• Circuitos hiperativos

O TOC está ligado a uma hiperativação do circuito frontoestriatal (córtex orbitofrontal, cíngulo anterior, núcleo caudado), que fica “preso” em padrões de verificação, medo e ritual. A hipótese dos autores é que a psilocibina ajuda a normalizar esse circuito — soltando o cérebro de loops rígidos.

• Neuroplasticidade

Em modelos animais que exibem comportamentos compulsivos severos, uma única dose diminuiu a limpeza compulsiva por semanas e foi acompanhada de sinais de reorganização sináptica: ou seja, a substância parece remodelar conexões cerebrais.

• Relevância 

Se os efeitos terapêuticos puderem ser reproduzidos por versões “não alucinógenas” da molécula (como a 1-metilpsilocina, citada na revisão), abre-se caminho para remédios anticompulsivos de ação rápida e duradoura que não exigem sessões psicodélicas supervisionadas longas e caras.

• O que ainda não se sabe

– Qual é exatamente a via molecular final que reduz a compulsão;

– Se a normalização do circuito frontoestriatal pode ser comprovada por neuroimagem em humanos;

– Se mulheres e homens respondem igual;

– Quanto do efeito vem da droga em si e quanto vem do suporte psicológico dado durante a sessão.

Fonte: Psilocybin’s effects on obsessive-compulsive behaviours: A systematic review of preclinical and clinical evidence

Entusiasmo com cautela

Apesar do entusiasmo com a revisão de estudos sobre o uso da psilocibina nos transtornos obsessivo-compulsivos (TOC), os autores, da Universidade de Melbourne, na Austrália, são cautelosos. “Os estudos clínicos revisados ainda têm amostras pequenas e falhas de controle placebo, o que impede conclusões definitivas”, adverte Thibault Renoir, neurocientista do Instituto Florey de Neurociência e Saúde Mental. 

A ausência de ensaios randomizados duplo-cegos (quando nem pacientes nem pesquisadores sabem quem está no grupo placebo), de dados de neuroimagem e de análises de longo prazo limita a força das evidências. Além disso, pouco se sabe sobre diferenças de resposta entre homens e mulheres — uma lacuna que precisa ser abordada, já que o TOC apresenta perfis distintos de prevalência e sintomatologia entre os sexos.

Outro ponto em aberto diz respeito à forma ideal de dosagem. Estudos com administração crônica de microdoses, em camundongos, mostraram resultados inconsistentes: enquanto ratos apresentaram leve melhora, camundongos SAPAP3 não tiveram redução nos comportamentos compulsivos. “Pode ser que o regime agudo, com uma dose única mais alta, seja mais eficaz que o uso prolongado”, sugere Renoir.

Marco

Mesmo com as incertezas, os autores acreditam que a revisão publicada na Psychedelics serve como um marco de consolidação do conhecimento sobre o tema. “Pela primeira vez, reunimos de forma sistemática toda a literatura clínica e pré-clínica sobre psilocibina e comportamentos compulsivos”, afirma Renoir. O trabalho propõe uma agenda de pesquisa para a próxima década, com foco em ensaios clínicos controlados, uso de neuroimagem funcional e desenvolvimento de análogos não alucinógenos.

“Se os efeitos observados em animais e nas pequenas amostras clínicas se confirmarem em ensaios maiores, estaremos diante de uma das descobertas mais transformadoras da psiquiatria moderna”, avalia o psiquiatra australiano Anthony Hannan, coautor sênior da revisão. “Mas é fundamental manter a prudência científica. O entusiasmo deve caminhar com a evidência.”