Alvejado pela correção política, sobretudo agora por acusações de sexismo, o cinema de ação americano foi ressuscitar um ícone do passado, do coração da Ásia, para encarar os novos tempos e dar conta do pleito por empoderamento feminino: o chinês John Woo, que deu a Hollywood cults como “A outra face” (1997), volta agora à seara das produções em língua inglesa para dirigir Lupita Nyong’o. Laureada com o Oscar de coadjuvante por “12 anos de escravidão”, em 2014, a atriz de ascendência queniana vai protagonizar o novo projeto do cineasta, um remake de um de seus maiores sucessos, “O matador” (1989), com Chow Yun-Fat.
Na trama original, um assassino de aluguel precisa aceitar um contrato de risco a fim de obter o dinheiro necessário para custear o tratamento de uma jovem cantora cega, cuja deficiência visual é decorrente de um erro dele, durante uma missão. Agora, Lupita terá o papel central para si, protagonizando sequências de tiroteiro em câmera lenta que marcam a estética de Woo e dão um status de autor à sua carreira, iniciada há 50 anos.
Seus filmes são festejados até quando fracassam, como “Manhunt” (2017), seu último longa-metragem (muito elogiado pela crítica), estrelado por atores japoneses e pela filha do diretor, Angeles Woo. Mas ele já viveu dias de sucesso na Ásia, com produções como “Alvo duplo” (1986) e “Fervura máxima” (1992), ambos atualmente em exibição na retrospectiva Cidade em Chamas – O Cinema de Hong Kong, que ocorre no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, até 16 de julho. A retrospectiva passou pelo CCBB do Rio em maio, lotando salas sessão a sessão. Aos 71 anos, este mito oriental da direção conversa com o JB sobre o passado e o futuro.
JB: O que ainda te inspira a filmar, depois de sua incursão meteórica por Hollywood entre 1993 e 2003, e de seu regresso à Ásia?
John Woo : O cinema me apresentou o sonho. O cinema, o teatro e a Igreja. Eu era menino na China, vindo de uma realidade pobre, onde a arte era a saída para se vislumbrar alguma transcendência. Aprendi a filmar a partir das coreografias dos musicais que vi quando garoto. Inclua aí ainda as coreografias das lutas de espada dos filmes de espadachim de Hong Kong dos anos 1960. Esse encanto me leva a querer trabalhar em diferentes culturas, a viajar o mundo em busca de sistemas distintos de trabalho e de representação.
Como foi em Hollywood a primeira vez? Posso te citar a experiência abençoada de ter feito “A outra face” com Nicolas Cage e John Travolta. Eu tive esses dois ícones ao meu lado e me surpreendi com o respeito que eles tinham por mim, trabalhando sempre de forma generosa. Eu ganhei dos produtores liberdade para fazer o que eu acreditava naquele set, o que me permitiu fazer o filme que eu esperava.
Essa é a sua expectativa para o projeto com Lupita? O que significa voltar a “O matador” quase três décadas depois de seu lançamento? É um filme sobre uma heroína agora. Muda tudo. E vou filmar em solo europeu. Terei uma mulher no papel principal, podendo explorar a Europa, numa releitura do mais perfeito de todos os meus filmes. Perfeito pelo tema, pela técnica e pelo romantismo de seu olhar de mundo. Filmar um longa de ação daquele jeito foi um experimento à sua época. E um experimento muito solitário, porque os atores e a equipe não faziam a menor ideia do filme que a gente estava tentando criar. Improvisávamos muito, pois não utilizei o roteiro no set. Eu escrevia as cenas de ação na hora. Escrevia e filmava. É uma energia de descoberta.
De onde vem o senso de Bem e de Mal em seu cinema? Pela minha lógica de mundo, inspirada no ideal dos romances de cavalaria e na estética dos grandes diretores de Hong Kong do passado, Tom Hardy seria um herói ideal para os meus filmes e Ryan Gosling, o meu vilão. Gosto de inverter certezas. Foi o que aconteceu com as personas de Cage e de Travolta em “A outra face”. Posso até coreografar a violência, mas não sou encantado com ela.
“Manhunt” fracassou nas bilheterias, mas tem seus fãs. Como foi essa experiência com o Japão? A edição final da versão que muita gente viu não é a minha. Trabalhei com um roteiro de má qualidade e com astros japoneses que não queriam cooperar. Mas minha filha se saiu bem e driblou as adversidades. Eu fico muito feliz de saber que, neste momento no qual ela busca seu lugar nas telas, eu não fui esquecido. Isso me dá uma sensação calorosa de que ainda sou capaz de fazer novos amigos, na forma de jovens espectadores.
* Roteirista e presidente da Associação de Críticos do Rio de Janeiro (ACCRJ)
Fonte: JB – ON LINE – RJ